Romero, de ‘A regra do jogo’, chama atenção por ser o primeiro vilão a usar signos de esquerda em novelas
Você se pergunta: esquerda ou direita? Romero Rômulo, o protagonista vivido por Alexandre Nero em “A regra do jogo”, fica com a primeira opção. Mas só aparentemente. O discurso do personagem reúne todas as utopias, símbolos, clichês e até mesmo vícios que historicamente abastecem essa esfera política. Ele brada aos quatro ventos: “Defendo os marginalizados”. Num dos próximos capítulos, ao ouvir o papo de sempre, Atena (Giovanna Antonelli) o provocará: “Claro, você dá a Bolsa Sequestro, a Bolsa Assalto, o Vale Três Oitão, Minha Arma, Minha Vida”. A loura conhece bem a sua presa, um bandido, integrante de uma facção criminosa. Para reforçar a imagem de “herói do povo”, tem até a imagem do guerrilheiro Che Guevera numa das paredes de casa. Aquele mesmo que teria dito: “Não quero nunca renunciar à liberdade deliciosa de me enganar”.
— Em “A regra do jogo”, os bonzinhos escorregam aqui e ali, os malvados às vezes fazem uma bondade. É assim como na vida real. Está todo mundo dançando entre o bem e o mal. Eu só consigo compreender gente desse jeito — ressalta Nero, para quem o protagonista é o primeiro de esquerda retratado como vilão em novelas.
Não há intenção de promover discussão políticaJoão Emanuel Carneiro, autor
A novidade é confirmada por Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia, que percebe na trama o reflexo dos “ debates sobre os caminhos da política e da sociedade brasileiras”. De fato, nunca antes na história dos folhetins, um autor adotou essa perspectiva. Lauro César Muniz encontra em episódios históricos a justificativa.
— Sofremos durante anos a censura radical e destrutiva da ditadura militar, da direita. Nossas novelas tinham a preocupação de sutilmente colocar questões exaltando a esquerda. Ser de direita era aprovar, silenciosamente, a violência da ditadura. A esquerda, por sua vez, criava escaramuças cuidadosas contra os militares no poder. Essa atitude se estendeu mesmo depois da queda da ditadura — analisa Lauro, satisfeito com a quebra de expectativa.
O autor escreveu “O salvador da pátria”, que mostrou a ascensão de um carismático boia-fria, o Sassá Mutema vivido por Lima Duarte. A novela foi lançada em 1989, ano da primeira eleição presidencial depois da ditadura, e o sucesso do papel criou um problema. Segundo o portal “Mémoria Globo”, Lauro César Muniz mudou o destino do personagem (em vez da presidência, ele disputou um cargo no Senado) após sofrer pressão de grupos partidários. “A esquerda identificava Sassá Mutema com o então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), e achava que o autor deveria dar um tratamento mais condigno ao protagonista, que se mostrava muito manipulável. A direita via em Sassá uma propaganda subliminar que favorecia o candidato petista”.
Na trajetória da teledramaturgia, personagens progressistas pagaram com a própria vida ao defender seus ideias. Foi assim com o Senador Caxias (Carlos Vereza), um defensor dos sem-terra em “O rei do gado” (1996), e com Helóisa (Cláudia Abreu), a filha de banqueiro que se alia à luta armada nos “Anos rebeldes” (1992). Ao pensar no duvidoso jogo de Romero, Ana Lucia Enne, antropóloga e professora do curso de Estudos de Mídia da UFF, elogia a complexidade do papel, e chama atenção para os riscos da representação.
— Não considero o Romero de esquerda. Ele usa a máscara social, como um defensor dos direitos humanos, para fazer falcatruas. Há uma esquizofrenia entre o que ele prega e suas ações. A minha queixa é dar porrada numa pauta já fraca, mas muito importante, que é a luta pelos direitos humanos. A atitude dele pode ser lida como genérica e passarem a associar os que defendem a causa, pessoas sérias, a bandidos — avalia.
Bandidagem não tem partidoJosé de Abreu, ator
Com Romero, João Emanuel Carneiro ressalta querer criar “um homem santos às avessas”.
— Embora estejamos passando por um momento sensível no país, não há intenção de promover discussão política. A sinopse da novela foi criada há algum tempo e a história é ficção. De fato, Romero é um bandido. E um cara que se diz de esquerda. Mas isso é um recurso da dramaturgia, não um retrato de uma pessoa ou de um grupo de pessoas — pondera.
No tabuleiro de peças montadas, Gibson (José de Abreu) ocupa a extrema direita. Na definição do ator, trata-se de um “coxão” (em referência ao termo “coxinha”, usado pejorativamente para denominar pessoas de direita). O empresário enfileira todos os clichês atribuídos aos reacionários, mas sem máscaras. No mesmo dia em que recebeu as primeiras cenas do personagem, José de Abreu combinou com Rui Falcão, presidente nacional do PT, ser porta-voz de uma das campanhas do partido.
— Li nas falas do Gibson todas aquelas coisas que me mandam diariamente no Twitter: “Gostou do bandido, leva para casa”. Gente que confunde favelado com criminoso. Romero, talvez, tenha uma posição de esquerda, mas tem um desvio de caráter que o colocou na bandidagem. E bandidagem não tem partido — afirma.
O ator, que se define como “um cara a favor dos pobres”, diz não se abalar com a possível desconstrução da ideologia:
— Sou a favor da liberdade, de todas as experiências. Em arte tudo é possível.
fonte http://extra.globo.com