Novelas são obras de ficção sem compromisso com a realidade. Espera-se que façam sentido, sejam verossímeis, mas não que retratem o mundo tal como ele é – este é o papel do jornalismo e, eventualmente, do documentário.
No caso de uma novela ambientada em uma comunidade pobre, cujo título faz uma homenagem carinhosa a ela, como “I Love Paraisópolis”, o problema é um pouco mais complexo.
Alcides Nogueira e Mario Teixeira, os autores do folhetim, inventaram uma Paraisópolis bastante desconectada da favela real, mas entendem que precisam mostrar um pouco da realidade de quem vive no local.
Um problema grave, tratado com muita sensibilidade, é o das mães solteiras ou das crianças criadas longe dos pais. São várias na novela – Paulucha (Fabiola Nascimento), Eva (Soraya Ravenle), Deodora (Dani Ornellas), cada uma com suas especificidades.
Os personagens que vivem na Paraisópolis da ficção enfrentam também dificuldades para pagar o aluguel, encaram o desemprego, se submetem a serviços subalternos com salários baixos no vizinho Morumbi, além de ter poucas opções de transporte e quase nenhuma segurança pública.
O poder na comunidade é exercido por Grego (Caio Castro), que manda e desmanda no cotidiano dos moradores. A novela, porém, retrata o criminoso com tintas de humor. Não há cenas de violência, tráfico de drogas ou mesmo furtos e roubos.
Com muita habilidade, a dupla de autores têm mantido a história em um registro cômico, oscilando da comédia romântica ao humor rasgado. Os vilões, para permanecerem adequados ao horário de exibição, ganharam um tom farsesco, que muitas vezes se aproxima de história em quadrinhos.
Por tudo isso, causou surpresa o ar de seriedade que “I Love Paraisópolis” adotou esta semana, fugindo totalmente do seu padrão de comédia. No capítulo de terça-feira (28), a vilã Soraya (Leticia Spiller) abandonou o estilo maluquete (“é tão difícil ser eu”) e ofendeu sua terapeuta, Patricia (Lucy Ramos), no restaurante: “Tinha que ser preta”, disse ao ser rejeitada por ela.
Na companhia do namorado, Lindomar (Gil Coelho), a psicóloga pediu a Soraya que repetisse a ofensa, no que foi atendida. A vilã, então, foi presa por injúria racial e saiu algemada do restaurante (imagem no alto do texto).
O capítulo desta quarta-feira (29) girou inteiramente em torno do crime de Soraya. A vilã foi condenada por quase todos os demais personagens da história. Seu marido, Gabo (Henri Castelli), tentou – sem sucesso – subornar Patricia e Lindomar, para que retirassem a queixa e mudassem o depoimento contra Soraya.
Izabelita (Nicete Bruno), mãe da vilã, fez um discurso forte e emocionante contra o racismo. Depois de dar um tapa na cara da filha, ela disse: “Você jogou na sarjeta toda a educação que eu e seu pai lutamos tanto para dar a você. Você é totalmente desumana, Soraya, incapaz de entender que todas as pessoas são iguais”.
A situação apareceu na novela 25 dias depois de Maria Julia Coutinho, “moça do tempo” do “Jornal Nacional”, ter sido alvo de injúrias raciais na página do telejornal no Facebook.
O tema foi tratado de forma aberta e corajosa pela própria jornalista, durante o “Jornal Nacional” no dia 3 de julho: “Eu já lido com essa questão do preconceito desde que eu me entendo por gente. Claro que eu fico muito indignada, triste com isso, mas eu não esmoreço, não perco o ânimo, que é o mais importante. (…) Os preconceituosos ladram, mas a caravana passa.''
Correndo atrás da realidade, mesmo que ao preço de deixar a comédia de lado por alguns instantes, “I Love Paraisópolis” marcou um golaço esta semana
fonte:http://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br
Mauricio Stycer