Voto de cabresto: entenda seu funcionamento e como identificá-lo hoje© Foto: Agência BrasilInstrumento da soberania popular, o voto representa o meio pelo qual exercitamos o sufrágio universal, ou seja, o direito de votar e ser votado.
É por meio dele que elegemos nossos representantes políticos em âmbito municipal, estadual e federal. Atualmente, o art. 14 da Constituição Federal de 1988 prevê o voto direto e secreto, com valor igual para todos. Porém, nem sempre foi assim!
Diferente do atual texto constitucional, a Constituição de 1891 previa o voto aberto (não secreto), em que era possível ver em qual candidato o eleitor iria votar.
Diante desse contexto e somado a outros fatores daquela época, o “voto de cabresto” tornou-se uma ferramenta poderosa utilizada pelos coronéis durante a República Velha (1889-1930).
Mas, afinal, o que foi esse tal voto de cabresto? Em qual contexto histórico e legal ele está situado? Qual a sua relação com os coronéis? E ele ainda existe?
VOTO DE CABRESTO: CONTEXTO HISTÓRICO E LEGAL
Em 15 de novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca proclama a república, marcando o fim da monarquia. Logo depois, em 1891, a segunda Constituição do Brasil era promulgada, consolidando a forma de governo republicana em substituição à monárquica.
Diferente da Constituição de 1824 (Brasil Império), em que o voto era baseado em renda (na prática, só os ricos podiam votar), a Constituição de 1891 (Brasil República) estabelece o voto universal masculino, mas deixando de fora: mulheres, analfabetos (maioria da população daquela época), menores de 21 anos, entre outros.
Percebeu alguma contradição? Isso mesmo: representatividade! Ou melhor, a falta dela.
Uma das características da forma de governo republicana é exatamente a participação popular e sua representatividade na definição de políticas públicas, o que não aconteceu em 1891.
Tudo isso contou com o respaldo doutrinário do liberalismo clássico. Mas como assim? Alguns anos antes de sua promulgação, ocorreu o fim da escravidão (1888), surgindo assim um novo contingente de potenciais eleitores.
A partir daí, surgiu a necessidade de aperfeiçoamento de mecanismos que garantissem a ampliação formal da participação política, mas que ao mesmo tempo pudesse excluir – na prática – as classes menos favorecidas.
Em resumo: todos poderiam votar, desde que alfabetizados – em uma população predominantemente analfabeta, rural e de escravos recém-libertos.
AS FORÇAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS DA ÉPOCA
Já vimos que o voto durante a República Velha era algo restrito às elites. Mas quem era a elite daquela época? Os grandes fazendeiros donos de terras.
Esse domínio econômico e político da elite agrária ficou conhecido como coronelismo, tanto é que a República Velha é lembrada até hoje como a república dos coronéis.
O coronelismo sustentava o predomínio das oligarquias (sistema político concentrado na mão de poucos) na República Velha. Como elite endinheirada daquela época, os coronéis eram os grandes proprietários rurais com autoridade política e econômica na região.
A figura do coronel predominava na vida social da região: era patrão, padrinho de casamento, padrinho de batismo… No final das contas, todos tinham alguma relação com o coronel e deviam favores e obediência às suas determinações.
Diante dessa dependência, o povo tornou-se moeda de troca em negociatas políticas com as oligarquias estaduais, representadas principalmente pelos governadores.
Essa rede de favores fez parte do sistema de trocas que ficou conhecida como “política dos governadores” e funcionava da seguinte forma: na esfera municipal, em troca de verbas e benefícios, o coronel garantia os votos em seu “curral eleitoral” para eleger o governador.
Por sua vez, na esfera estadual, o governador de estado, em troca de apoio político e financeiro, garantia os votos para a eleição do governo federal.
No final das contas, esse sistema viabilizou alternância de mineiros e paulistas na Presidência da República, o que ficou conhecido como “política do café com leite”.
O voto de cabresto foi a ferramenta utilizada pelos coronéis para controlar o voto popular, por meio de abuso de autoridade, compra de votos ou utilização da máquina pública.
As regiões controladas politicamente pelos coronéis eram conhecidas como currais eleitorais, sendo o povo coagido a votar nele ou no seu candidato. Eram verdadeiros espaços de mando e desmando, onde a decisão dos coronéis locais determinavam a ação da população.
Como já vimos, o voto naquela época era aberto, de tal modo que era possível ver em quem o eleitor iria votar. Valendo-se dessa “brecha legal”, os coronéis deslocavam jagunços para os locais de votação para ver em quem qual candidato o eleitor iria votar.
Caso contrariasse os interesses dos patrões, o eleitor sofria retaliações, como: agressões físicas, perda do emprego, despejos de suas casas e suas famílias eram castigadas.
O voto aberto, somado às retaliações dos coronéis caso o povo contrariasse suas ordens, daria um resultado previsível. Um solo fértil para a manipulação e fraude das eleições.
Os analfabetos não votavam (lembram?), porém os coronéis davam um “jeitinho”: como uma das práticas de fraudes, eles entregavam aos empregados um papel que já estava preenchido com o nome do candidato, restando apenas depositá-lo na urna de votação. O transporte aos locais de votação também eram garantidos por esses coronéis.
Além disso, a prática da compra de votos ou troca por bens materiais era mais uma maneira de fraudar as eleições. O eleitor trocava seu voto por um favor, como um bem material (sapatos, roupas e chapéus) ou algum tipo de serviço (atendimento médico, remédios, verba para enterro, matrícula em escola, bolsa de estudos).
A venda, por sua vez, se dava por pequenos interesses, promessas particulares dos oligarcas aos pobres, camponeses e empregados locais. E se nada disso garantisse a lealdade do voto, a violência seria usada como forma de convencimento.
O controle das oligarquias só foi abalado com o próprio desenvolvimento dos centros urbanos brasileiros. Com o passar do tempo, o meio rural e os instrumentos de dominação ligados a esse espaço cederam lugar para novos grupos sociais também interessados em ampliar sua ação política.
Com a Revolução de 1930 e a chegada de Getúlio Vargas à presidência do país, isso ficou ainda mais evidente. Mas afinal, o coronelismo acabou? Consegue identificar práticas atuais semelhantes ao voto de cabresto? Vamos em frente!
COMO IDENTIFICAR O VOTO DE CABRESTO NOS DIAS DE HOJE
Do final da república dos coronéis até os dias de hoje, muita coisa mudou. Hoje o voto não é mais aberto, não há mais como saber em quem o eleitor votou, então é possível escolher de forma livre e direta o candidato preferido.
Porém, na prática, podemos identificar situações que nos remetem a um voto de cabresto moderno, mesmo com tantos avanços e conquistas.
O fenômeno ocorre com maior frequência em cidades do interior brasileiro, onde a principal fonte de renda é a prefeitura. As pessoas podem se ver obrigadas a votar em determinado candidato, talvez não mais pela coerção física, mas sim pela força psicológica, o medo.
O medo de se verem sem o emprego e, consequentemente, sem renda paralisa as pessoas que preferem votar em quem lhes é imposto do que enfrentar o poder em prol de seus ideais.
Outros, por sua vez, diante da realidade de miséria em que vivem, “optam” por aquele candidato que possa suprir suas necessidades básicas em um curto prazo, por exemplo: entrega de cestas básicas, pagamento de despesas com água e luz, compra de material de construção, promessa de emprego, entre outros. Tudo isso se configura como um voto de cabresto moderno.
Contudo, graças ao fortalecimento da Justiça Eleitoral, tais práticas são denunciadas e seus responsáveis punidos. Até outubro de 2017, desde as eleições de 2016 (eleições municipais), 49 governantes já haviam perdido o cargo por problemas como compra de voto, abuso de poder econômico e político e propaganda eleitoral irregular.
VOTO DE CABRESTO: REFLEXÃO DO QUE FOI VISTO
Finalizada a leitura, podemos identificar em qual contexto histórico e legal o voto de cabresto estava inserido e como ele foi importante para o avanço da “política dos governadores”.
Vimos a contradição imposta pelo liberalismo clássico, o qual fez surgir uma República sem representatividade popular, visto que mulheres, analfabetos (maioria da população da época), mendigos, entre outros, não poderiam votar, conforme previa a Constituição de 1891.
A figura central dessa história foram os coronéis, elite agrária da época. E em uma posição secundária, estava a população sujeita às determinações e arbitrariedades dos coronéis, sendo vista como “currais eleitorais”. Os resultados das eleições eram manipulados: compra de votos, repressão física e até mesmo mortos e analfabetos participavam do processo eleitoral.
Porém, apesar da consolidação atual das instituições democráticas, ainda podemos identificar práticas análogas ao voto de cabresto da república dos coronéis.
Durante o período eleitoral, principalmente nas cidades do interior, candidatos utilizam diversos meios ilegais para manter o poder nas mãos de uma elite política local: entrega de cestas básicas, distribuição de material de construção, obras pela cidade às vésperas da eleição e, é claro, a compra do voto.
Em outubro deste ano, teremos mais uma oportunidade de eleger nossos representantes na esfera federal e estadual. E só por meio do voto consciente e independente, poderemos sonhar com uma democracia verdadeiramente representativa.
Julia Di Spagna
fonte:msn